Participação Especial: Gaspar Matos

Inquietação

por Gaspar Matos 

José Mário Branco (Foto @ Rita Carmo (CC BY-SA 4.0)

 
 
Nota prévia: segue-se um pequeno ensaio que propus para publicação online pela Associação Portuguesa de Bibliotecários, mas enjeitado por ser considerado muito longo para as redes sociais. Como me parece que, se aguardar pelo formato impresso, perde pertinência e capacidade de gerar reflexão e discussão, avança por aqui; assim, e tal como na ficção literária, passa a ser vosso.
Gaspar Matos
 
 
Sendo Maria José Moura mãe das bibliotecas públicas portuguesas então certo é que, no passado dia 15 de setembro - na Gulbenkian -, se assistiu a uma homenagem de muita da sua prole, e outros admiradores. Incontornável quando falamos de bibliotecas em Portugal, há algum tempo que se tem vindo a sublinhar o seu papel - nomeadamente ainda em vida, algo particularmente relevante; após a sua morte, dir-se-á que este foi o grande tributo, com a edição de um livro e o testemunho de muitos. Foi bonito, merecido, louvo a Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas, Profissionais da Informação e Documentação (BAD) e espero que continue nesta senda de lembrar as pessoas-referência da profissão.
 
Da sessão - e do livro - ficou-me uma vontade incrível de manifestar a inquietação que sinto em falar, abertamente, sobre aonde estamos e para onde vamos no que respeita às bibliotecas públicas (BP), entendendo-se públicas sobretudo pelas municipais e pelas outras que, apesar de serem em muito menor número e estando sob tutela do poder central, abrem as suas portas à comunidade, sem pruridos. Penso que esta é, também, a melhor homenagem que individualmente podemos prestar a MJM: pensar, continuamente, o caminho das BP debatendo, confrontando e propondo ideias e direções.
 
Debruço-me, pois, sobre as comunicações da Zélia Parreira e do Bruno Eiras (de todos os palestrantes, gostei particularmente destes) a quem antecipadamente agradeço o terem, nesta homenagem, tido a sabedoria e a honestidade de abordarem as questões que - para eles - afetam, reforçam ou prejudicam as BP, hoje. Concordo com algumas ideias, discordo de outras e rejeito uma em absoluto e, assim e do que me pareceu mais relevante, sublinho e comento. Da Zélia:
 
1. aborda a necessidade, tão poucas vezes considerada, de um planeamento estratégico que é essencial na prestação de serviços à comunidade: concordo, a que associo a necessidade de práticas de gestão e reporte continuadas que, aparentemente, não têm sido rotina no meio biblioteconómico; é que sem números não há avaliação do passado, nem gestão no presente, nem projeção do futuro. No entanto, importa relembrar também que a comunidade e os acontecimentos que a acompanham são cada vez mais voláteis, pelo que esse planeamento estratégico deve incluir um grau de reatividade plausível, ou seja, uma percentagem da atividade nunca passível de ser pensada a priori e que será, necessariamente, baseada em serviços e dinâmicas on demand, conforme os cenários (enquadrando: numa década tivemos uma crise financeira mundial, uma pandemia e uma guerra com repercussões internacionais – reagimos, e teve mesmo de ser assim, ninguém o previa). Considerar, pois, espaço para o imprevisível no planeamento estratégico parece-me incontornável, o que implica também uma cada vez maior capacidade de adaptação das equipas de trabalho;  
 
2. fala igualmente da necessidade de as bibliotecas terem oferta digital daquilo que hoje é habitualmente impresso, e que as soluções adotadas pelas bibliotecas, durante a pandemia, foram maioritariamente da conversão do analógico para o digital, retornando à velha realidade mal o Covid-19 deu tréguas, não aproveitando a janela de oportunidade para a mudança: concordo na generalidade discordando no particular, e tenho de dar o exemplo de Oeiras (acompanhado por muitas bibliotecas desse país, nomeadamente as agrupadas em comunidades intermunicipais) na adesão ao Pressreader (que Oeiras mantém, e manterá) oferecendo jornais e revistas online; acresce, no caso do município onde trabalho, o surgimento do serviço de empréstimo com entrega ao domicílio (que veio para ficar); a passagem dos encontros literários para ambiente híbrido (que se tornou ponto assente e conta já com um público fiel não só local mas até nacional e internacional), e também no valor que constituem estes vídeos que, permanecendo online, se constituem como repositório cultural de grande valor. De notar ainda que, com a pandemia, surgiu o despertar para a necessidade de, cada vez mais, mantermos serviços de ar livre e fora de portas, de que são exemplos as quatro bibliotecas de praia do concelho. Portanto, eu diria que cada um aproveitou conforme as suas possibilidades e - acima de tudo - vontades. Quem nada quis fazer continuou na senda na inoperância (tanto pode ser feito a custo zero), e daí não vêm surpresas.
 
3. das funções, a Zélia alerta para o facto de as BP serem mais do que promoção da leitura, servindo igualmente como pontos de difusão de informação e desempenho de tarefas da mais variada ordem, desde que acompanhem as necessidades da comunidade. Estando em linha com este pensamento, vejo-o mais premente em populações em que a oferta de equipamentos e serviços culturais, educacionais e até assistenciais seja menor; e menos relevante em comunidades que, tendo já uma panóplia de infraestruturas, não carecem da biblioteca para a universalidade de serviços ou iniciativas que lá podem ter lugar. Um exemplo paradigmático e que conheço bem é o da Biblioteca de Penalva do Castelo: vila de pequena dimensão, na Beira Alta, tem uma das últimas bibliotecas criadas no âmbito dos programas de apoio da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas (RNBP). Aí, até pela escassez de outros espaços públicos, cabe tudo e tudo se faz, e bem; pergunto se noutras geografias, nomeadamente metropolitanas, esse modus operandi fará o mesmo sentido? Em suma, vendo o cabimento do “todos os serviços cabem aqui”, não vejo a utilidade de “meter todos os serviços aqui”, se existir oferta por outrem no entorno, até porque se corre o risco de entramos numa lógica de canibalização ou concorrência com outras instituições ou orgânicas, algumas até dentro do próprio poder local que nos tutela; ou - pior ainda - este voluntarismo poder, efetivamente, radicar numa questão que está dentro de nós, inconscientemente: queremos apoiar as comunidades ou salvar as BP? Qual a origem da nossa boa vontade? É sincera ou apenas um instinto de sobrevivência? E se, imaginem, a comunidade entender que o melhor para a biblioteca é a sua extinção para que a sua área útil seja convertida, apenas e por exemplo, em atendimento assistencial tutelado pela Ação Social do Município? Isso é bom? Mau? Para quem? Ficam as perguntas, que também me bailam na cabeça, com a certeza de que importa, sempre, conhecer da forma o mais profunda possível a população que servimos, para adequarmos a oferta.
 
4. sobre, e cito ainda da Zélia, a necessidade de “uma estratégia que nos divorcie do universo escolar” e sobre a Rede de Bibliotecas Escolares (RBE) e o Plano Nacional de Leitura (PNL) terem “desenvolvido um trabalho de grande qualidade, mas que resultou no que podemos designar como escolarização da leitura” discordo, mas abordarei a questão mais adiante, ao refletir sobre as palavras do Bruno.
 
Destaque final para três questões importantíssimas levantadas pela Zélia:
  • a. a criação da inexistente lei de bibliotecas que, mesmo que possa levar o poder político a tabelar por baixo - receoso das necessidades de investimento contínuas que daí advenham -, serviria para afirmar política e socialmente estes equipamentos, e a sua relevância;
  • b. o alerta sempre premente de que a RNBP não existe oficialmente (fico sempre espantado quando escrevo isto), apesar do trabalho feito precisamente sob a égide da MJM e que nos últimos anos teve um avanço estratégico nunca alcançado (com resultados profícuos e continuados, sob a orientação do Bruno Eiras), com a criação dos Grupos de Trabalho da RNBP sustentados nas Comunidades Intermunicipais. Afirmar esta rede e estes grupos institucionalmente é premente;
  • c. a necessidade de formação, a saber, a urgência do tornar a ministrar os cursos técnicos da BAD que, como sabe qualquer um que os tenha frequentado (sou um deles) eram de qualidade superlativa e colocavam no mercado de trabalho recursos humanos prontos a enfrentarem os desafios do ofício, quantas vezes com tanta ou mais competência (pelo menos na vertente operacional) do que um licenciado com pós-graduação em Ciências da Documentação. Neste particular acrescentaria igualmente a importância de se colmatar a falta de formação em informática mais diretamente relacionada com a implementação e manutenção de Sistemas Integrados de Gestão de Bibliotecas, nomeadamente os open source.
Concordando, discordando ou assim-assim, o meu muito obrigado à Zélia pela capacidade de inquietação e de reflexão que em mim causou e, espero, a muitos mais que a ouviram e venham a ler as suas palavras no livro de homenagem à MJM: essa que, mesmo após nos ter deixado, continua a levar uma bibliotecária alentejana a trazer à colação as palavras do José Mário Branco e que este bibliotecário, por contágio e com descarado plágio, importou para título deste - chamemos-lhe - artigo de opinião/ensaio.
 
Já do Bruno, destaco:
 
1. a referência à nova versão do Manifesto IFLA/UNESCO para as BP em que, entre outros valores e propósitos já enunciados em anteriores revisões do texto, é sublinhado, e cito, “o desenvolvimento e promoção da literacia digital, dos media e da informação como forma de capacitar os cidadãos com vista à manutenção de sociedades democráticas informadas”, e também é mencionada a importância de que “na era digital, a legislação de direitos de autor e de propriedade intelectual deve garantir às bibliotecas públicas a mesma capacidade de adquirir e dar acesso a conteúdos digitais em termos razoáveis, como acontece com os recursos físicos”. 
 
Sem dúvida, e atendendo à bipolarização política que se vai fazendo sentir por vários pontos do globo, ao recrudescer dos extremismos e ao surgimento da desinformação como cobarde arma de manipulação das massas, cabe às BP - entre outras instituições - o papel de esclarecer, formar e informar, na medida em que as mesmas sempre foram pontos de acesso credíveis à informação (e que o suporte se tenha alterado do impresso para o digital não altera a nossa responsabilidade, apenas torna a tarefa incomensuravelmente maior). Já quanto ao acesso por via web a conteúdos, e à devida adaptação dos direitos de autor a essa realidade, pois subscrevo igualmente a intenção na medida em que temos a obrigação de fornecer a todos os públicos, para além de jornais e revistas (já aqui mencionei o Pressreader), produção literária de qualidade (até para aferirmos se os mais jovens a apreendem por essa via). Por isso, aguardo ansiosamente pela boa nova anunciada em 2021 pela Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB) de criação de uma plataforma de empréstimo de livros eletrónicos para toda a RNBP com início em 2022, num investimento inicial de 900 mil euros e que garantiria o acesso gratuito durante três anos a todos os municípios. Pela parte que me toca, e enquanto lá tiver responsabilidades, posso afirmar que Oeiras estará na linha da frente a apoiar esta iniciativa e a assumir a sua quota parte do investimento, se necessário; aliás, o município empreendeu contactos no sentido de, em 2020, disponibilizar uma solução corporativa de empréstimo online para os seus utilizadores, baseada em algumas ofertas comerciais do mercado de ebooks; não teve sucesso nesta demanda.
 
2. “Quando o Manifesto IFLA/UNESCO não refere uma única vez a palavra livro, e a leitura surge relacionada com a competência que permite adquirir informação com vista ao exercício da cidadania ativa, de onde virá esta crença absoluta na leitura de ficção?”. Cito esta frase do Bruno pois confesso que li e reli pensando poder estar a compreender mal, mas agora e sem margem para dúvidas só posso dizer que esta interpretação da versão do Manifesto de 2022 não é correta. No que respeita à não menção do vocábulo “livro” (que é um facto, e estranho a ausência) compreendo que tal tenha como intenção a priorização do conteúdo para lá do suporte, e daí não vem mal ao mundo; no entanto o mesmo Manifesto, nas suas 5 páginas, inclui as palavras “cultura” (11 vezes), “educação” (7 vezes), “alfabetização” (3 vezes), “aprendizagem” (2 vezes), “imaginação” (2 vezes), “criatividade”, “curiosidade” e “empatia” (1 vez cada). Achar que o livro (seja em que suporte for) e a leitura de ficção não são do maior relevo para concretizar os objetivos por detrás destes enunciados é algo que não compreendo, e com o qual não posso concordar; aliás, defender que a leitura de ficção não concorre de forma determinada para um indivíduo mais culto, bem formado, alfabetizado, imaginativo, criativo e empático não se sustenta com base numa crença, porque este assunto não é dado a crendices: é algo estudado há muito, pelo que existe evidência científica de que sim!, a leitura de ficção influencia positivamente (e muito) o construir da pessoa mais capaz para o pleno exercício da sua cidadania.
 
Quanto ao facto de o vocábulo “leitura” surgir apenas relacionado com a competência supramencionada tal é incorreto, e cito da alínea imediatamente anterior à mencionada pelo Eiras: “Criar e fortalecer os hábitos de leitura nas crianças, desde o nascimento até a idade adulta”. Esta afirmação sublinha a leitura por si, e não apenas relacionada com uma competência meramente instrumental. Aliás, seria uma abordagem bastante cinzenta - convenhamos - que a aquisição de conhecimentos e competências tivesse de ser apenas via leituras não-ficcionais: a ficção literária sustenta-se na realidade mas com a beleza e a arte dentro pelo que se afirma, indubitavelmente, como uma forma bem mais humana de revelar o mundo em todas as suas dimensões, nomeadamente às gerações mais novas.
 
3. “… é comumente aceite que o alocar quase exclusivo dos poucos recursos disponíveis nas bibliotecas públicas a atividades de promoção de leitura foi uma má opção a longo prazo e transformou muitas das bibliotecas públicas em extensões das bibliotecas escolares…”
 
Desta citação do Bruno, acerca da transformação das BP em extensões das Bibliotecas Escolares (BE) discordo igualmente, e aqui dou opinião igualmente sobre as palavras da Zélia, que sugere que deve existir um “divórcio do universo escolar” por parte das BP. Confesso que não compreendo porque é que um trabalho colaborativo entre BE e BP possa ser prejudicial às segundas, já que ambas trabalham no sentido da promoção do livro e da leitura (pelo menos); aliás, procurei em vários repositórios e até em diferentes línguas para saber se, fora de Portugal, isso seria visto como um problema, e confesso que não encontrei nenhuma evidência. Custa-me por isso a entender o “comumente aceite” já que eu, pelo menos, não concordo com essa afirmação. Cada uma tem o seu lugar, tem ambas uma história já de décadas de trabalho conjunto (recordo o Concurso Nacional de Leitura), mas mais: a RNBP tem a aprender com aquilo que foi (e é) a estratégia da RBE, e muito. 
 
Não esqueçamos que o Gabinete da RBE existe oficialmente, sob tutela da Direção-Geral de Educação, ao contrário da RNBP que, sendo uma realidade, é uma informal, pelo que no aspeto da força institucional a RBE está anos-luz à frente da RBNP; na afirmação no terreno, a história também consolida a estratégia das BE a longo prazo (algo que falhou à RNBP) já que a RBE alicerçou a sua presença no terreno com a figura das Coordenadoras Interconcelhias que, in situ, eram - e são - as representantes de um rumo uniforme e consistente que consolidou essa rede e a fez crescer de poucas centenas para mais de dois mil equipamentos em pouco mais de duas décadas. Não obstante, teria sido muito difícil à RBE consolidar-se no terreno sem a RNBP, pelo que entender-se que as realidades não podem coexistir e cooperar é algo que me escapa à perceção, a não ser que… o receio seja de que as BP sobrevivam exclusivamente dos públicos escolares, mas isso é uma questão das BP (se é que é uma questão, de todo) que não me pareça que se resolva com uma separação, mas sim com uma diversificação das audiências culturais que as próprias BP têm obrigação de trabalhar, para chegar a todos os públicos. Outra questão é a rentabilização dos recursos, pois quando o Bruno diz que “o alocar quase exclusivo dos poucos recursos disponíveis nas bibliotecas públicas a atividades de promoção de leitura foi uma má opção”, pode-se sempre colocar a pergunta: e de que modo os recursos foram/são rentabilizados? Foram/são parcos ou desbaratados? E isso leva-nos ao ponto seguinte. 
 
4. Diz o Bruno que, e cito, “… acresce que se considerarmos que nas últimas três décadas, este enfoque na promoção da leitura e no público infantil não gerou significativamente mais leitores nem contribuiu para criar mais utilizadores das bibliotecas públicas, podemos concluir que – apesar do êxito da Revolução Silenciosa – algo falhou.”.
 
Concordando que algo falhou, não me parece que tenha sido pela nossa relação com as BE, nem com uma suposta “escolarização da leitura”, como afirma a Zélia. É que, para lá de uma excessiva devoção às BE que teria enfraquecido as BP (o que me parece argumento pouco razoável) podemos considerar, como pontos menos conseguidos:
 
a. a Revolução Silenciosa prolongou-se no tempo, mas em diferentes localizações, nunca foi a longo prazo em cada implementação; do edificado construído e das condições iniciais de funcionamento (tarefa homérica de MJM e suas equipas, note-se) passou-se a uma situação em que, findos os cinco anos de ligação dos municípios à tutela, cada BP navegasse por si. Foi aí que se destacaram alguns timoneiros - Joaquim Mestre, Ana Runkel, Etelvina Araújo, entre outros - mas em casos de sucesso pontuais, e não disseminados e alinhados numa estratégia comum (como na RBE), pelo que a Rede nunca o foi – eis um dos motivos do nosso fracasso;
 
b. o desinvestimento na maioria das BP foi-se tornando notório, e um exemplo é o seguinte: no relatório estatístico de 2019 da RNBP (optei por 2019 por ser ainda um ano pré-pandemia e de suposta retoma económico-financeira) percebemos que a aquisição de livros por 1000 habitantes foi de 39,19, sendo que a IFLA recomenda um mínimo de 200 livros considerando o mesmo rácio. Visto isto, e já que cumprimos apenas 19,59% do volume de aquisições preconizado pelos standards internacionais que tal falarmos, antes de mencionarmos as BE, no nosso falhanço por força da obsolescência das coleções, nomeadamente de ficção? Ou será suposto uma BP ser atrativa e criar leitores mesmo sem adquirir novas obras literárias para todas as idades, numa base regular (acrescendo que muitas nem para jornais e revistas têm dotação financeira)?
 
c. do mesmo relatório, constata-se sobre dias e horas de abertura que, e cito, “O número médio de dias de abertura ao público (277) das bibliotecas manteve-se igual ao de 2018, registando-se apenas um ligeiro aumento do número médio de horas semanais de abertura ao público que foi, em 2019, de 45 horas semanais.”, ou seja, queremos estar para as comunidades, mas decididamente não abrimos ao domingo, várias não o fazem todos os sábados e outras encerram durante dias úteis; quanto a horários, 45 horas divididas por 5 dias úteis dão nove horas/dia, o que significa que muitas fazem horário de expediente, que não serve o cidadão comum trabalhador (e, se acrescentarmos o sábado para dividirmos as tais 45 horas, o cenário piora). Ou seja, apontar baterias da causa das coisas nas BP a um excessivo envolvimento com as BE e a um enfoque excessivo no livro e na leitura de ficção parece-me redutor e muito pouco autocrítico, pelo que não concordo de todo com as citações que aqui deixei. É que, tendo apenas as autarquias como tutela, as BP ficaram votadas aos humores dos autarcas e à capacidade de advocacy dos bibliotecários responsáveis, juntos dos primeiros. Raras vezes algo medra se desamparado e, se se fizer coisa adulta, muitas vezes sai torta.
 
No que respeita à eventual escolarização da leitura (e apenas para concluir este tópico de uma menção feita pela Zélia), não concordo que PNL seja responsável por tal; é que, no que respeita à missão da BP, só posso aplaudir o que tem sido feito por essa estrutura, nomeadamente pensando num recurso que não existia e que tem sido de enorme valia para a nossa missão nas BP: as listas de livros recomendados em várias circunstâncias (nomeadamente leitura autónoma e fora dos programas escolares), que são um auxiliar precioso nas tarefas de apoio aos leitores das BP. Noutra dinâmica, já referida, a realização de um Concurso Nacional de Leitura numa base anual é um desafio em que, apostando, se atingem resultados paulatinamente, e dou como exemplo Oeiras que, de 2018 até hoje, cresceu em números de escolas participantes de 7 para 17 e em números de alunos a chegar à fase municipal de 12 para 108. Mais: as atividades das BP direcionadas para escolas podem - e devem -, basear-se sempre em literatura de ficção com títulos distintos dos utilizados nos currículos e quem define isso são, obviamente, os próprios responsáveis das BP. Assim o façam. 
 
Afirmar tudo isto sem tomar posição seria estranho, e aqui vai: no caso das Bibliotecas de Oeiras (falo de onde trabalho) a promoção do livro, da leitura e da literatura segue à cabeça, sem hesitar, seguindo-se as outras frentes de trabalho. A comunidade espera isso de nós, procura-nos por isso e nós, para além de darmos resposta, temos a profunda convicção de que cabe em grande parte às BP serem garante de todo o capital humanista e progressista que a literatura encerra. 
 
Uma última nota sobre discordâncias, já que a seguir vêm mais concordâncias: a ideia da radicalização, na comunicação sobre as BP. Para já, sobre a própria Comunicação da RNBP: muito ténue, precisamente porque não tem a força institucional de uma rede. O mais próximo que vi em prol da RNBP foi a campanha Somos Bibliotecas (e sou suspeito, pois trabalhei nela), mas que saiu não da DGLAB, e sim da BAD. Já a RBE e o PNL, por exemplo, têm uma muito maior capacidade de mobilização de líderes de opinião e de estabelecer campanhas comunicacionais de âmbito abrangente. Já dos erros de uma comunicação espartilhada (tal como o é a RNBP), atente-se à mensagem passada pelos próprios profissionais: de há uns tempos a esta parte era - e é - o bordão “A Biblioteca não é um espaço de silêncio!”, agora é esta ideia da rutura com a leitura de ficção. Gostava que, por uns instantes, nos colocássemos no lugar de alguém que não sabe o que é uma BP e que tem uma ideia vaga: imaginemos que pensa que é um local de silêncio onde se pode aceder a literatura de ficção e não-ficção, e se pode estudar. A minha pergunta é: uma BP é isto? A minha resposta é: é, sim. Mas é mais do que isso: também é espaço de sociabilização, de formação e de diversão. Reparem que não é necessária uma rutura abrupta com o que sempre fomos para dizermos aquilo que agora somos. As BP são também, não tem de ser sempre isto em detrimento daquilo. Agora também já não somos promoção da leitura de ficção, somos serviços à comunidade? Errado. Somos ambos. Esta necessidade de gritar ruturas para afirmarmos uma ideia só demonstra uma coisa: andamos zangados, e isso não ajuda à resolução dos problemas. De todo.
 
Por último, destaque ainda ao texto do Bruno para a importantíssima referência à necessidade de inclusão dos diversos segmentos da população nas BP. Em maio deste ano tivemos, em Oeiras e na Livraria Verney (esta parte integrante da Divisão de Bibliotecas) Liliam Thuram a apresentar uma obra sobre o racismo, a romancista Paulina Chiziane e uma mesa-redonda sobre o jornalista Mário Domingues e o seu papel na afirmação negra e na questão colonial. E de um momento para o outro as Bibliotecas tinham, no público, uma tez de tonalidade um pouco mais escura. Sabíamos, mas não imaginávamos tão gritantes, das ausências de programação com que a comunidade negra do concelho se identificasse. E isso obriga-nos, agora, a dar continuidade, porque todos interessam, sendo que interessam ainda mais os menos representados.
 
Reitero o agradecimento a dois bibliotecários a quem reconheço competência, e com quem felizmente nem sempre concordo: mas gera-se debate, confronto de ideias e reflexão sobre posições, e só isso nos permite pensar as coisas, na voragem rápida dos dias. Termino com um desafio: a BAD, no próximo congresso, não quer fazer um painel de discussão sobre esta questão BE/BP? Era capaz de ser coisa interessante. 
 
Bibliografia:
 
IFA-UNESCO (2022). Manifesto da Biblioteca Pública. Disponível em: https://repository.ifla.org/.../IFLA_PL%20Manifesto2022... (acedido a 07.10.2022)
 
DGLAB (2019). Relatório Estatístico da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas. Disponível em: http://bibliotecas.dglab.gov.pt/.../Relatorio_Estatistico... (acedido a 07.10.2022)
 
PARREIRA, Zélia. Bibliotecas Inquietas. In PRÍNCIPE, Pedro, ed.; et al. - Homenagem a Maria José Moura. Lisboa: Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas, Profissionais da Informação e Documentação, 2022. ISBN 978-972-9067-40-2 p. 31-36.
 
EIRAS, Bruno Duarte. Isto (não) é uma biblioteca pública: uma biblioteca que só existe na nossa cabeça. In PRÍNCIPE, Pedro, ed.; et al. - Homenagem a Maria José Moura. Lisboa: Associação portuguesa de Bibliotecários , arquivistas, Profissionais da Informação e Documentação, 2022.ISBN 978-972-9067-40-2 p. 43-48.
 


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