Bibliotecas Inquietas

Comunicação apresentada no colóquio de homenagem a Maria José Moura

Fundação Calouste Gulbenkian,  15 de setembro de 2022


(publicado no livro de homenagem a Maria José Moura)


 

Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação

Porquê, não sei

Porquê, não sei

Porquê, não sei ainda

Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer

Qualquer coisa que eu devia perceber

Porquê, não sei

Porquê, não sei

Porquê, não sei ainda

 

O meu primeiro contacto com a Dra. Maria José Moura foi em 1994, quando li pela primeira vez o documento Leitura Pública: Rede de bibliotecas municipais: Relatório (1986), cuja autoria e trabalho de levantamento e diagnóstico se deve a um grupo de trabalho por ela coordenado. Só uns meses depois desta primeira impressão tive oportunidade de a conhecer pessoalmente, quando entrou numa sala de aula da Faculdade de Letras de Lisboa, onde eu e mais 19 candidatos a bibliotecários recebíamos a formação do curso de Especialização em Ciências Documentais.

Nessas primeiras impressões marcou-me a inquietação que a conduzia a uma permanente análise crítica da situação no sector, a coragem de identificar os problemas, e a preocupação de delinear caminhos e estratégias, não apenas para os resolver, mas para construir um corpo sólido de bibliotecas, capaz de enfrentar os desafios de uma sociedade, já então, em mudança.

Penso muitas vezes nestas características e procuro fazer regularmente este exercício, aliado a um processo quase cartesiano de questionar tudo, na certeza de que só o conhecimento da realidade crua - e tantas vezes cruel – nos conduz à construção de projetos de crescimento, solidamente alicerçados e capazes de contribuir para a mudança que todos queremos no mundo, através das bibliotecas.

É com base nesta permanente inquietação que me atrevo a formular algumas hipóteses de trabalho para inovar com determinação, numa época em que as bibliotecas parecem ter chegado de novo a uma encruzilhada. A realidade, a sociedade e as comunidades que servimos sofreram alterações inimagináveis há trinta anos. As bibliotecas têm tentado, de forma muito desigual e pouco harmoniosa, acompanhar estas mudanças. Porém, fazemo-lo em modo reativo e isso tem-nos custado uma perda de visibilidade e relevância que pode ser irreversível.

Que podemos, então, fazer?

 

1.     1. Planeamento estratégico

 

Há muitos anos, numa reunião de bibliotecários no Baixo Alentejo, todos seguíamos a Biblioteca de Beja, verdadeiro farol que nos iluminava o caminho. Todos queríamos ter, à nossa escala, os serviços que Beja prestava à sua comunidade e discutíamos formas de convencer os nossos executivos a investir nas nossas bibliotecas para que isso fosse possível. Fomos interrompidos pelo colega Figueira Mestre, que nos disse algo como “Vocês estão a perder tempo a inventar o que já foi inventado. Isto já está feito. Querem fazer nas vossas bibliotecas? Comecem a fazer. Mas não podemos perder mais tempo a pensar nisto. O que deveríamos estar aqui a discutir é para onde é que vamos agora?”.

Esta é uma das perguntas que se mantém e que deveríamos fazer todos os dias. É tão básica a noção de que precisamos de saber para onde vamos para organizar eficazmente o que estamos a fazer hoje, que até se torna cliché. Mas, pergunto: sabemos?

A.   A Biblioteca híbrida e sem paredes

Eu, que detesto a grafia adotada pelo AO90, desisti do combate quando percebi que todas as crianças, na escola, estão a aprender de acordo com a nova grafia. É um processo irreversível e consolidado. O mesmo se passa com a relação das novas (e menos novas) gerações de cidadãos face ao ambiente digital. A transição segue o seu curso, mesmo que alguns resistentes continuem a escrever em papel, a guardar papéis em arquivos pessoais, a imprimir fotografias ou a contactar presencialmente serviços públicos cada vez mais desmaterializados.

De todos os processos associados ao universo impresso, só a leitura subsiste como preferência face ao digital. Os livros continuam a ser objetos apaixonantes, o que os torna necessários e, por isso, comercializáveis. Mas não duvidemos, a transição está em marcha e embora acredite que o livro físico nunca desaparecerá, também sei que perderá, inevitavelmente, a importância que hoje tem e, consequentemente, a fatia de mercado.

Com esta primeira evidência, torna-se óbvio que as bibliotecas, que, não sendo só livros, mantêm o core business focado no livro e na leitura (já analisaremos esta questão), estão muitíssimo atrasadas no processo, já irremediavelmente reativo, de disponibilizar leitura às suas comunidades.

A primeira linha de ação deste planeamento estratégico deveria ser, por isso, a transição para uma biblioteca híbrida, que disponibilize leituras em vários formatos e em qualquer lugar, que não despreze as gerações mais confortáveis em ambiente digital e não deixe para trás as comunidades que escolhem, ou ainda necessitam, do universo físico e impresso.

A pandemia de covid-19 e os confinamentos a que fomos obrigados demonstraram a capacidade de resposta pronta de muitas bibliotecas, que recusaram ficar paradas, à espera de melhores dias. É natural que, num curto espaço de tempo, completamente desprevenidas, sem acesso aos meios e recursos necessários, muitas bibliotecas tenham optado por transferir para ambiente digital as atividades correntes: requisição e empréstimo de livros, hora do conto, clubes de leitura. Não houve, realmente, criação de novos serviços. Assistimos, de forma forçada e abrupta, ao abrir de uma janela de oportunidade para a transformação dos serviços, mas verificamos que ela não foi  não foi explorada e rentabilizada. A inquietação gerada pela alteração drástica das circunstâncias deu lugar ao sentimento reconfortante de “regresso à normalidade”.

Urge retomar esse caminho com entusiasmo, de forma estruturada, criando efetivamente serviços, facilmente acessíveis, em ambiente remoto, enquanto se mantém, de forma sustentada, um serviço presencial eficaz.

B.     As funções da Biblioteca

Retomemos a questão da leitura enquanto função primordial da Biblioteca. Confirmo: não o é. A função primordial da Biblioteca é o acesso à informação, ao conhecimento e à cultura, para todos, em igualdade de circunstâncias.

Durante décadas esta função cumpria-se quase exclusivamente através da leitura. Era nos livros e jornais que se encontrava o conhecimento. Hoje, correndo o risco de me repetir, a realidade alterou-se.

As bibliotecas devem, por isso, alargar o seu âmbito de ação para cumprir a sua função. Sendo as comunidades profundamente heterogéneas, é necessário implementar medidas que vão desde o apoio no desempenho de tarefas que carecem de competências básicas de literacia até à produção de guias para o combate à desinformação, passando pela consciencialização dos públicos para temas como o desenvolvimento sustentável, o cyberbullying, as diferentes formas de violência (desde todas as formas de racismo ou exclusão social à violência doméstica) ou a saúde pública. A nossa capacidade de intervenção na formação de cidadãos informados, conscientes e dotados de espírito crítico é cada vez mais relevante e essencial no combate a todas as formas de populismo.

No que diz respeito à leitura, cuja promoção será sempre indissociável das Bibliotecas, impõe-se uma estratégia que nos divorcie do universo escolar. Quer a Rede de Bibliotecas Escolares, quer o Plano Nacional de Leitura têm desenvolvido um trabalho de grande qualidade nesta área, mas que resultou no que podemos designar como escolarização da leitura. Muitos jovens encaram a leitura como um trabalho associado à escola e abandonam-na com a mesma rapidez com que celebram o fim dos TPC, mal acaba a obrigação da frequência escolar. O facto de as bibliotecas públicas prepararem atividades exclusivamente para grupos escolares integra-as neste processo e não permite uma autonomização, no imaginário dos leitores que pretendemos formar, dos diferentes papéis que as diferentes tipologias de bibliotecas desempenham.

Assim, é necessário planificar uma estratégia de promoção da leitura dissociada do público escolar e destinada a todos os membros da comunidade, sem exceção.

A insistência na palavra comunidade não é inocente. As bibliotecas precisam de se focar cada vez menos nos “seus leitores” para se focarem na sua comunidade. O terceiro lugar que queremos ser implica ser a “porta aberta” de que nos fala o Manifesto da IFLA/UNESCO, mas requer uma participação proativa. Exige atenção e capacidade de escuta face às necessidades da comunidade, para que a Biblioteca possa ser sempre um espaço de resposta às perguntas e demandas dos cidadãos, quer sejam intrincadas pesquisas de informação, quer seja o espaço onde há sempre cultura a acontecer, nas suas mais variadas manifestações, quer seja o local onde alguém nos ajuda a preencher um formulário, ou apenas um local acolhedor, de reencontro consigo e com os outros.

 

2.     2. Regulamentação e funcionamento orgânico

 

A.    Lei de bibliotecas

Além de Portugal, no conjunto dos países que constituem a União Europeia, apenas a Áustria e o Chipre não dispõem de lei de bibliotecas. Alguns fatores contribuem para esta situação:

A formulação de leis de bibliotecas tem, historicamente, evoluído nos seus propósitos. Numa primeira fase importava determinar a ocupação dos territórios, dotá-los de uma infraestrutura homogénea que constituísse simultaneamente uma manifestação física e presente da existência do Estado e um serviço que proporcionasse a todos os cidadãos a possibilidade de acesso à informação, ao conhecimento e à cultura. Ora, Portugal conseguiu implementar um serviço de bibliotecas que abrange todo o território, sem que a lei tenha sido necessária.

Numa segunda fase, as leis de bibliotecas procuravam, em consonância com o manifesto da UNESCO de 1949, que estas instituições contribuíssem para uma maior coesão social. Em Portugal, a coesão social foi objeto de outras áreas de investimento, alimentadas pelos fundos sociais europeus.

Numa terceira fase, que corresponde à atualidade, as leis procuram assegurar a capacidade de resposta das bibliotecas públicas aos novos desafios de uma sociedade em rápida evolução. A Biblioteca assume-se como uma instituição ativa, produtora de conteúdos dinâmicos e mediadora de conhecimento, onde quer que ele se encontre.

É nesta terceira fase que nos encontramos e é nesta circunstância que a formulação de um texto legislativo se apresenta como uma necessidade, sobretudo pelo caminho que nos levará até lá e que permitirá um conhecimento pleno da situação atual e um debate construtivo, resultantes de um processo de análise, discussão técnica e profissional que envolva todos os intervenientes, o que implica um levantamento e diagnóstico apurado da situação atual das bibliotecas e dos serviços por elas prestados. Ao identificar problemas, desafios, oportunidades e constrangimentos existentes nas bibliotecas públicas, estaremos aptos a fazer a necessária reflexão sobre o papel que elas desempenham na sociedade.

Por outro lado, a elaboração e promulgação de uma lei de bibliotecas, é também um sinal de reconhecimento do significado político e social destas instituições e pode constituir a evidência da relevância que as autoridades nacionais atribuem às bibliotecas públicas.

B.     A RNBP

Presente nas nossas vidas, a RNBP não existe enquanto organismo oficial. Este deverá ser o primeiro passo de um plano estratégico para o desenvolvimento e afirmação das bibliotecas públicas portuguesas. A oficialização da RNBP enquanto estrutura e a correspondente dotação de meios para a realização do seu trabalho é essencial. A coordenação de uma estrutura que cobre todo o país não pode continuar indefinidamente num limbo não oficial. A dependência orgânica das Bibliotecas de organismos com estruturas de administração autónomas, como são os municípios, não deve ser incompatível com uma estrutura nacional, com o cumprimento de serviços mínimos e orientações técnicas determinadas por um gabinete que pense estrategicamente o sector e acompanhe e apoie o seu desenvolvimento.

A oficialização desta estrutura permitiria também à administração central a criação ou implementação, com maior facilidade, de serviços de proximidade compatíveis com as Bibliotecas. A título de exemplo, refira-se a possibilidade que as bibliotecas representaram na época dos confinamentos devido à covid-19 e que foi totalmente desaproveitada. Sendo serviços que gozam, felizmente, de uma elevada credibilidade junto das populações, geograficamente próximos, dotados de meios e, sobretudo, de recursos humanos disponíveis para apoiar as populações, as bibliotecas públicas e a sua rede constituem veículos privilegiados de disponibilização de informação verificada, de orientação em momentos de crise, de centralização de procedimentos. Ao fazer parte de uma estrutura eficiente, a “sala de estar” das comunidades pode e consegue ser e fazer muito mais.


3.     3. Formação

 

Depois de um crescimento explosivo, a formação de profissionais de bibliotecas caiu num panorama desolador. A nível operacional desapareceu completamente a formação de técnicos profissionais (correspondentes à categoria de assistente técnico). Urge repor esta formação, qualificando-a como formação de nível 4 e garantindo a substituição, em tempo útil, dos profissionais que se encontram nas bibliotecas em fim de carreira.

No caso dos técnicos superiores tem-se verificado um progressivo afastamento da prática, quer retirando efetivamente horas de formação em contexto de trabalho, quer diversificando os currículos – talvez para atender às demandas neolinguísticas dos processos de financiamento – de uma forma que já quase não se identificam com o trabalho efetivo numa biblioteca. Repensar os currículos é uma necessidade, tendo como bússola a aproximação à competência técnica, capacidade crítica e de resolução de problemas, participação na vida das comunidades e, sim, vocação.

Só profissionais qualificados e motivados podem prestar um serviço de qualidade, em qualquer área de atividade. Mais um cliché que não perde a atualidade.

 

4.     4. Bibliotecas com coleções patrimoniais

 

Permitam-me este desvio para uma tipologia de bibliotecas habitualmente ignorada quando pensamos e debatemos bibliotecas. Existe em Portugal um conjunto considerável de bibliotecas com fundos patrimoniais de grande interesse e relevância. Cada uma delas está entregue à instituição da qual depende e o trabalho que nelas é desenvolvido tem grande heterogeneidade e amplitude. No imaginário público são descritas como depósitos, cujo único propósito é a salvaguarda. Pensamos nelas como salas escuras, guardadas por bibliotecários zelosos e antipáticos, que têm como único propósito dificultar o acesso dos investigadores aos tesouros que ocultam.

Ora, na realidade, muitas destas bibliotecas têm feito um considerável esforço para passar da salvaguarda para a etapa seguinte: a divulgação. Na verdade, a identificação dos documentos e sua publicação é a forma mais eficaz de salvaguarda. Não só contribui para a diminuição do número de vezes que são manuseados, como desincentiva o perigo sempre presente da alienação de património, uma vez que as obras estão publicamente identificadas com a pertença a uma Biblioteca.

Atrevo-me mesmo a dizer que as bibliotecas patrimoniais são as que estão a conseguir retirar, de forma mais eficaz, o maior proveito das novas tecnologias, com os processos de virtualização das suas coleções já em curso e que prometem acelerar graças aos investimentos que o Plano de Recuperação e Resiliência lhes pode consagrar.

Para o futuro, de preferência a curto prazo, fica o repto para o estabelecimento de formas de cooperação institucional que permitam rentabilizar recursos e potenciar a divulgação das coleções patrimoniais existentes. Já existem exemplos de acordos de cooperação, habitualmente associados a projetos concretos. A criação de uma rede de bibliotecas patrimoniais permitiria que as bibliotecas pudessem assumir um papel proativo e não reativo no que a estes projetos diz respeito. A colaboração com centros de investigação em particular e com a Academia em geral, que já provou ser benéfica para ambos os intervenientes, ganharia uma outra dimensão. Por fim, mas não menos importante, alguma homogeneidade de procedimentos e modos de atuação facilitaria a vida aos investigadores que as procuram, proporcionando-lhes um grau razoável de expetativas quanto ao serviço que lhes pode vir a ser prestado.

Foco, estratégia e trabalho em rede. Não há nada de novo debaixo do sol, com exceção de tudo o que mudou nos últimos anos. Há muito para fazer. Vamos?

 

Ensinas-me fazer tantas perguntas
Na volta das respostas que eu trazia

Quantas promessas eu faria

Se as cumprisse todas juntas

Não largues esta mão no torvelinho

Pois falta sempre pouco pra chegar

Eu não meti o barco ao mar

Pra ficar pelo caminho

 

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